O “bico” dos policiais

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O promotor de Justiça em Natal, capital do Rio Grande do Norte, Wendell Beetoven Ribeiro Agra, analisa neste artigo os aspectos legais e os inconvenientes do chamado “bico”, prática frequente na atividade de segurança privada e transporte de valores. O texto é esclarecedor, mostrando os riscos decorrentes do “bico” para quem se aventura nesta atividade irregular e para a sociedade. Vale a pena ler!

O “bico” dos policiais

Por Wendell Beetoven Ribeiro Agra

O lamentável episódio ocorrido esta semana, em Parnamirim, em que dois policiais militares que realizavam o transporte de grande quantia em dinheiro foram vítimas de assalto, resultando na morte de um deles e em ferimentos no outro, chamou a atenção para um grave problema que é chamado “bico”, que muitos policiais realizam nos momentos de folga. A questão, porém, envolve diversos aspectos, como a confusão entre segurança pública e privada, a baixa remuneração e a jornada de trabalho dos policiais militares e, ainda, o aumento da criminalidade e até o envolvimento de policiais em delitos, como noticiado com frequência.

O crescimento econômico faz aumentar a circulação de dinheiro entre estabelecimentos comerciais e bancários, o que fomenta a cobiça de criminosos, que agem na quase certeza da impunidade, dada a ineficiência das polícias federal e civis, em todo o Brasil, na repressão ao crime organizado e aos delitos praticados por criminosos “profissionais”, ou seja, aqueles que adotam o delito como meio de vida e utilizam métodos na sua execução, muitas vezes se valendo de treinamento militar ou conhecimento obtido nas próprias forças de segurança pública.

Em todo o País, o transporte de valores, notadamente em quantias vultosas (mais de R$ 21 mil, segundo o critério legal), é regulamentado pela Lei nº 7.102/1983 e pelos Decretos nº 89.056/1983 e 1.592/1995, que determinam que essa é uma atividade própria da segurança privada, cujas empresas que a exploram necessitam de autorização do Ministério da Justiça e se submetem, periodicamente, à fiscalização da Polícia Federal, devendo, ainda, cumprir uma série de exigências, como, por exemplo, utilizar veículo blindado (carro-forte) e disponibilizar aos vigilantes equipamentos de proteção individual (coletes à prova de balas e armamento) e seguro de vida em grupo.

Obviamente, é um serviço relativamente caro, pelo que muitos empresários, movidos pelo interesse na maximização dos lucros e redução dos custos, preferem contratar, informalmente, policiais de folga para a execução do serviço.

Em verdade, ocorre uma exploração do policial, uma vez que, na ausência de vínculo formal de emprego, a iniciativa privada remunera esses profissionais qualificados com valores irrisórios, sem recolhimento de contribuições obrigatórias (INSS, FGTS etc.), sem contratar seguro de vida e sem disponibilizar equipamentos de segurança imprescindíveis em face do risco da atividade.

A família do policial que, por exemplo, é assassinado nessas condições fica também prejudicada em relação a direitos previdenciários, como a pensão proporcional ao tempo de serviço público, haja vista que a morte não ocorreu em serviço. A Justiça do Trabalho, contudo, entende que “preenchidos os requisitos do art. 3º da CLT (prestação de serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário), é legítimo o reconhecimento de relação de emprego entre policial militar e empresa privada, independentemente do eventual cabimento de penalidade disciplinar prevista no Estatuto do Policial Militar” (Súmula 386 do TST), sendo possível, igualmente, o ajuizamento de ação indenizatória contra a empresa que o contratou irregularmente e o encarregou de uma atividade perigosa sem fornecer todos os meios de segurança necessários.

Contribuem para o crescimento desse mercado informal fatores como a baixa remuneração dos policiais e a jornada de trabalho a que são submetidos. Com efeito, ganhando pouco no serviço público, é natural que o profissional procure meios alternativos de complementar a renda, utilizando, na atividade privada, os conhecimentos, habilidades e facilidades que o cargo público lhe proporciona.

Por outro lado, as extenuantes jornadas de trabalho e os prolongados períodos de folga, normalmente alternando 24 horas de serviço ininterrupto por 3 dias de folga, facilitam o “bico”. Vale registrar que recentemente o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, na ausência de legislação estadual específica quanto à jornada de trabalho dos militares, limitou-a à aplicável aos servidores públicos civis, de 40 horas semanais.

Ora, não é de se esperar que um homem sadio, com pleno vigor físico, permaneça três dias em casa sem fazer nada ou, no máximo, se dedicando às atividades domésticas!

Ocorre, na grande maioria dos casos, é que o policial de baixa patente aproveita a folga para trabalhar em algum serviço privado e propiciar melhores condições de vida à família, optando muitas vezes pela segurança particular. E daí vem algo mais grave, que é a realização de atividades tão estressantes quanto às de policiamento sem o devido descanso e, depois de algum tempo, a priorização do serviço particular em detrimento do público.

Assim, embora o chamado “bico” não caracterize, necessariamente, uma infração disciplinar, à luz do Estatuto da Polícia Militar, nem crime tipificado no Código Penal Militar, a ensejarem punição individual do policial que o pratica, quando consistente em transporte de valores vultosos, constitui uma ilegalidade em face da legislação que trata da segurança privada e também violação das leis trabalhistas e previdenciárias. Além disso, constitui risco para a vida e integridade física dos policiais, prejudica o seu desempenho funcional e, em caso de morte fora do serviço, ainda prejudica a sua família e o próprio serviço público, que perde um servidor no qual se investiu em treinamento. Logo, deve ser coibido pela administração militar, tanto na elaboração de escalas de serviço mais razoáveis e próximas daquelas destinadas aos demais trabalhadores (40 horas semanais divididas em 5 ou 6 dias durante a semana), exigindo a dedicação exclusiva ao serviço, quanto remunerando melhor os profissionais da segurança pública, a fim de que não necessitem se submeter à exploração privada.

Wendell Beetoven Ribeiro Agra é promotor de Justiça em Natal (RN). Artigo publicado no boletim eletrônico nº 421 da CNTV dia 9 de setembro de 2011